sexta-feira, abril 09, 2004

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TEXTO DE
JOSÉ FRANCISCO COLAÇO GUERREIRO

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CONTO DE ABRIL
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Era uma vez…um povo que vivia tolhido, em clausura, dentro de um reino inventado lá para o fim do mundo. Num lugar recôndito ,longe de todos os países ,distante de todas as nações ,orgulhosamente só, num cenário onde os dias se sucediam sempre tingidos com o cinzentismo da tristeza e as noites se repetiam sempre idênticas, no tom anilado do medo. Uma ansiedade surda e inconfessável trespassava as vidas, generalizadamente pequeninas, limitadas na quadratura do regime ,sem que se lhes permitisse terem horizontes rasgados para além da distância que as mãos podiam tocar. A pátria e a religião eram dogmas que legiões de guardas ,bufos e fantasmas defendiam implacável e fervorosamente ,em nome da mesma fé e da vil intolerância que fez dos cruzados seus aios. A escravidão tinha prendido o futuro dos homens aos penedos do conformismo e assim ,agrilhoados , mourejavam , enquanto podiam e quando lhes era permitido, para ganharem uma côdea de pão amargo .
Quando nos campos deixaram de poder viver, de saco às costas procuraram os arrabaldes da cidade capital onde se instalaram .Com o seu suor e sangue alimentaram as industrias nascentes e experimentaram a saudade. Sentimento igual , já haviam vivenciado os pigmeus seus antepassados quando, pelo mar fora, dentro de cascas de nozes ,desbravaram os oceanos dando novos mundos ao mundo e em gloriosa odisseia propagaram a fé, salvando das profundezas dos infernos tantas almas ímpias.
Deserdados da sorte, despojados de tudo ,são só possuidores da força do seu trabalho que vendem barato e sem condições aos poucos empregadores que nessa terra havia, outro tipo de gente, outra realidade social que existia no fausto e com as mordomias de quem domina .
Nesse reino inventado ,lá para as bandas do fim do mundo ,os meninos não iam à escola. Por carência absoluta, iam para os campos ,guardavam gado, lutavam pelo sustento, empreendendo o sacrifício como um ritual de vida que de geração para geração se mantinha.
Mas um dia os homens descobriram que havia uma esperança para lá das fronteiras. Encheram uma mala de cartão de coragem e partiram no seu encalço. Conheceram então, mais profundamente, o sentido e os contornos da saudade. Souberam que o sofrimento das casas de lata ainda superava o já suportado das charnecas. Os filhos deixaram de conhecer os pais. As mulheres ficaram viúvas sem terem os maridos defuntos .Mas de fora vinham francos , marcos, divisas que alimentavam a economia e ajudavam o regime, indiferente à imensa dor gerada pela debandada .Tanto que chorou o vento na sua passagem pelos campos abandonados. Terras incultas , casas vazias, camas arrefecidas.
Mas como se tal não bastasse, o governo começou a sacrificar a juventude, oferecendo o seu sangue e a sua vitalidade, em altares de guerra, em paragens distantes, onde os naturais se haviam erguido de armas na mão na luta pela sua independência ,contra o velho domínio do império.
Acrescentou-se a angustia que os discursos do regime não debelavam. Aprofundou-se a saudade que os aerogramas não atenuavam.
Foi então que nesse país longínquo e distante de todos, orgulhosamente só ,numa madrugada de Abril ,abriram-se os corações à esperança, os sonhos inundaram as ruas e acreditou-se na utopia. Partiram-se grilhões, soltaram-se as algemas ,abriram-se os peitos ,transbordou a liberdade.
As multidões, eternamente caladas, gritaram o que até então não tinham ousado pensar. Uns porque acreditaram, num novo rumo para a história, sumiram e os outros ,pela mesma razão, impuseram-se nas atitudes ,nos gestos, nas ocupações, nas reivindicações, na expressão dos sentimentos,na revolução dos cravos.
Por isso, a guerra que consumia a juventude, no ultimo altar do império, acabou .Por isso,os presos políticos ,passaram da masmorra à luz do dia, erguendo o punho, sorrindo ao futuro,brandindo as suas ideias como armas .
E houve quem acreditasse ,se calhar ainda há quem acredite, que nessa terra donde os pigmeus partiram em casquinhas de nozes ,dominando os oceanos para darem novos mundos ao mundo,a liberdade e a igualdade se tinham enraizado e eram doravante flores desabrochadas no rumo das suas vidas.
Mas, para lembrar as utopias e renovar os sonhos ,todos os anos, no dia vinte cinco do mês das aguas mil, tocam as fanfarras, estalam os foguetes, fazem-se discursos, e renovam-se as juras de manter vivo o espírito da tal madrugada em que os corações se abriram à esperança ,naquele país inventado e à beira mar plantado.